Passo sobre a areia num movimento rápido e esta levanta-se face à velocidade da minha passagem. Na minha frente uma formação rochosa surge, rapidamente altero a minha direção fazendo um semicírculo, encontrando as partículas de areia que ainda flutuam. Reflectindo a luz, brilham em tons que fazem lembrar pedras preciosas e lembranças esquecidas. Procuro uma passagem circundando as rochas, e começo a ganhar altitude. Por de baixo de mim, as cores vivas de vermelho, verde e púrpura dançam presas às pedras em movimento concertado, fazendo-me desacelerar um pouco para apreciar as cores. Ouso aproximar-me para sentir o seu leve toque neste momento. Este momento em que os meus sentidos estão mais apurados, este momento em que a memória é mais clara e com essa clareza, vem uma necessidade diferente das necessidades de todas os dias. Contudo, também sei que não é a primeira vez que sinto esta sensação, que me leva para longe…
Diante de mim pequenas formas esguias e prateadas apercebem-se da minha chegada, num reflexo de medo pelo meu tamanho, disparam em direcções opostas tentando-me confundir, mas eu não lhes presto perseguição. Não agora, não antes, pois eles são caça e eu não caço, eu busco o meu alimento. Algo me faz prender neste pensamento de transição que todos fazemos eventualmente, do ser para o não ser e sei, há algo relacionado entre o que sinto ultimamente com o que me fez vir até aqui, embora não saiba como.
Continuo a minha viagem, perdendo-me nos movimentos do meu corpo que me fazem deslocar pelo azul. Sigo as correntes para encontrar alimento e deixo as dúvidas perderem-se. A minha mente afunda-se conforme a luz diminui… o breu silencioso cobre tudo, o meu movimento perpétuo continua a levar-me mas não estou presente. Adormeço.
Subitamente luz! Tudo tão claro, onde estou? Rochas de jade flutuam no ar, umas em forma de pilares perfeitos sem qualquer irregularidade e com várias aberturas circulares, formam padrões diferentes entre si. Outras são em forma de meia-lua mas mais achatada de cor azul índigo como o céu, também com aberturas nas faces. Deambulando entre estas rochas perfeitas, avistam-se um sem fim de seres estranhamente familiares, que circulam pelo ar cantando as mais belas melodias. Surgem também das aberturas nas grandes rochas, como se fossem os seus covis com a música das suas palavras entoando mais alta. Outros deixam-se cair dessas cavidades apenas para de seguida se erguerem no céu, cujos tons de lilás e amarelo me deixam fascinado.
Dois destes seres avistam-me e parecem reconhecer-me do alto da abertura onde estão. Lançam-se no ar, e vêm em minha direcção com os seus corpos surreais. Da parte traseira do seu tronco saem largos membros que se assemelham um pouco aos meus, mas tudo o resto é bem diferente. A cabeça oval estica-se do tronco. Nas laterais desse tronco, possuem tentáculos que bifurcam nas pontas. Mais para baixo, o tronco bifurca-se também em outros dois tentáculos. Os padrões dos seus corpos variam completamente de um para o outro, embora sejam claramente da mesma espécie. Quando chegam até mim, consigo ver nas suas cabeças redondas, que os seus grandes olhos claros de tom verde brilham por me ver, as suas bocas rasgam-se em emoção. Tocamos os nossos tentáculos e fazemos círculos pelo ar em alegria…
Perco-me desta visão e vou algures para outro sítio. Vejo-me no meio de uma grande multidão, todos reunidos numa caverna recortada na perfeição, com grandes arcos que atravessam todo o tecto da caverna, que é de um amarelo cristalino. Alguém flutua mais alto, a melodia da sua canção é de raiva e malícia, a pouco e pouco vai fazendo praticamente todas as vozes se unirem à dele. Conforme as vozes se levantam em tom e gravidade assim as paredes vão-se tornando vermelhas, mais se erguem no ar e uma grande comoção fica instaurada. No meio da confusão não se ouve a canção de um dos meus companheiros, uma súplica baixinha de advertência sobre um prenúncio terrível, as paredes agora já todas vermelhas. A visão foge-me mais uma vez.
Perco-me desta visão e vou algures para outro sítio. Vejo-me no meio de uma grande multidão, todos reunidos numa caverna recortada na perfeição, com grandes arcos que atravessam todo o tecto da caverna, que é de um amarelo cristalino. Alguém flutua mais alto, a melodia da sua canção é de raiva e malícia, a pouco e pouco vai fazendo praticamente todas as vozes se unirem à dele. Conforme as vozes se levantam em tom e gravidade assim as paredes vão-se tornando vermelhas, mais se erguem no ar e uma grande comoção fica instaurada. No meio da confusão não se ouve a canção de um dos meus companheiros, uma súplica baixinha de advertência sobre um prenúncio terrível, as paredes agora já todas vermelhas. A visão foge-me mais uma vez.
O céu está tão cheio, mas sem alegria, sem danças. Dois enormes grupos enfrentam-se. Canções de acusação e ameaça são proferidas de um grupo para o outro. Os padrões dos corpos do grupo que nos opõe são verde-escuro, enquanto os do meu são roxo carregado. Tenho os meus companheiros um de cada lado, um deles volta a cantar baixinho sobre um castigo que se abaterá sobre nós por este erro terrível…
Um grande silêncio abate-se entre os presentes. Um silêncio tenso, manchado de medo e violência, a todos faz refém, e parece interminável. Como se os dois grupos estivessem presos, por obra de uma maldição qualquer, sem se puderem mover para sempre. Pergunto-me, se esse destino seria assim tão mau. Num instante o silêncio quebra-se e fazem-se ouvir gritos que mais parecem uivos. As duas hostes avançam uma sobre a outra, com grande velocidade até colidirem no espaço que outrora estava entre nós.
Começa um combate terrível, diferente de qualquer caça ou luta territorial que já tenha assistido. Gritos de dor enchem o céu. Dou por mim com as minhas mãos em volta do pescoço de alguém já sem vida, abro as mãos muito depois do que seria necessário embriagado com a fúria e deixo-a cair. Vejo um dos meus companheiros ser atingido na cabeça, e sem pensar, avanço em seu socorro. Sem cautela alguma na minha tentativa desnorteada de salvamento, sou apanhado por alguém que me agarra por trás. A sua raiva fere-me. Tento debater-me pela minha vida mas é tarde demais. Sinto cortes grandes, e as costas muito húmidas, os olhos ficam pesados e as forças abandonam-me. A escuridão envolve-me, sinto-me a cair, a cair sem destino, o meu fim.
Algo repentino traz-me de volta do sonho. Um colosso cinzento de dentes enormes apanha uma presa que tenta sem sucesso lutar pela vida. Estremeço com a violência e fujo ainda com memória viva da minha visão, afasto-me apenas o suficiente para evitar o predador. A sensação que começou apenas como uma leve impressão agora está tão forte que é impossível ignorar ou resistir. Volto rapidamente para a minha rota e atravesso uma distância incrível com grande urgência, sei que algo me espera e conforme me aproximo mais do destino a mais leve e ténue canção chega-me à consciência. A sensação que sentia era uma melodia! Muito baixa, quase imperceptível mas suficiente para me despertar e me guiar até aqui.
Vejo outros a convergir para a baía, todos agora, como eu, cientes de quem somos. A tristeza percorre-me pois sei que quando a canção acabar, esta canção de saudades e amor, vou esquecer-me de quem fui. Vou-me esquecer dos céus púrpura e amarelo, das cidades flutuantes, e das melodias da minha família. Mas hoje voo! Avanço a toda a velocidade até ao limite da água e salto para o céu abrindo as asas que já não tenho. Sinto o ar pelo meu corpo, vejo o sol a brilhar e o céu azul sobre mim. Caio na água mas não desisto. Volto a ganhar velocidade e tento voar uma e outra vez enquanto a canção do meu povo durar, esta canção maravilhosa agora tão alta que me enche de alegria: estamos perdidos mas não esquecidos! Como que em resposta às minhas investidas, e, sentindo certamente o mesmo que eu, milhares dos meus irmãos lançam-se através do limite do mar. Um após outro cruzam os céus por um momento, neste instante em que sabemos quem somos e enquanto ouvimos as canções do nosso povo. Sentimento doce e amargo, recordamos e sabemos que nos recordam com amor e saudade. Recordamos o que perdemos, o castigo.
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Neste lugar, nesta baía sem nome, estes sons que atravessam o cosmos ouvem-se melhor. Como um eco nas montanhas, nesta altura que já foi, reúne-se ao redor de um altar circular de cristal todo um povo que perdeu demasiado numa guerra proibida pelos deuses. Mas como nem aqui nem em lugar algum os deuses têm poder sobre as vontades, este povo, encontrou razão para se dividir, odiar e lutar, ignorando a proibição. O castigo foi terrível. Todas as almas que partiram nesse dia jamais voltaram a esse mundo e assim todo um povo minguou. Canções perderam-se. Amigos nunca mais voltaram a abraçar-se, amantes não voltaram a apaixonar-se. Por isso na alvorada do dia em que se travou a grande guerra, todos se juntam em volta do altar de cristal em memória dos que se perderam. Lançando-se aos céus voam, cantando o mais alto que conseguem, na esperança que em algum lugar as suas vozes cheguem até aos seus entes queridos.(IMPORTANTE VER LINK: http://www.youtube.com/watch?v=74mdJUaRNaA)
21-10-2014
Gostei muito! O argumento é comovente e estimula a imaginação ;)
ResponderEliminarObrigado ;).
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