quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Três paragens


A manhã de inverno é atipicamente fria, visível pela placa de gelo que cobre os vidros da maioria dos carros da cidade. Não é comum que esta temperatura se faça sentir assim, especialmente porque estamos junto ao mar.
Atravessando as ruas sinuosas, um rapaz de estatura atlética e metro e oitenta de altura, encolhe-se no seu sobretudo, lutando para não deixar o frio entrar. Assim que Rodep saiu para o passeio, percebeu imediatamente que tinha vestido roupa pouco quente. Inquieto como estava, não quis voltar para dentro de casa novamente para trocar para uma camisola mais quente e nem pensar em trocar de calças. A sua indumentária tinha sido cuidadosamente escolhida no dia anterior, por isso teria que aguentar. Além do mais, a sua inquietude provocava-lhe um receio terrível de chegar atrasado e perder o autocarro, mesmo estando ciente que estava bem adiantado. Hoje mais do que qualquer outro dia tinha de seguir naquela carreira, tinha-se decidido finalmente, “ De hoje não passa.”, pensa o rapaz de dezoito anos a caminho da universidade.
Uma vez passada toda a turbulência das praxes, foi numa manhã bem mais amistosa que a de hoje que Rodep a viu pela primeira vez. Havia qualquer coisa naquela rapariga sentada na parte mais atrás do autocarro, qualquer coisa que o fez parar no momento. Aquele momento em que se vira e se encara todos os assentos e aqueles que os ocupam. Nesse momento, ele viu-a e algo se remexeu dentro de si, algo se desarranjou e mudou. Quem já se apaixonou, “à primeira vista”, como se costuma dizer, sabe bem o que Rodep sentiu, no entanto, este desconhecia tal sensação e a confusão instaurou-se. Inicialmente decidiu-se a desvalorizar e racionalizar o que sentia, “É normal estar a pensar se ela vem amanhã também, ela é bonita e chama a atenção de qualquer um”. Quando os dias foram passando e o interesse em vez de diminuir aumentou, foi obrigado a pensar mais no porquê de dar por si a pensar no dia de amanhã, mais especificamente na viagem para a escola. Chegou inclusivé a ficar preocupado, julgando que era algum tipo de obsessão. Seria normal, no Natal, ter fantasiado em entregar-lhe um pequeno presente, agradecendo-lhe por fazer com que os seus dias começassem sempre melhor? “Aí sim, ela ia pensar que sou doido. Sim, se eu o fizesse, seria loucura.”, pensou ele na altura. O ano novo veio e avançou por Janeiro e, depois de grande indecisão, Rodep resolveu-se. Não havia de ficar sempre a pensar nisto, de alguma forma tinha de ganhar coragem e falar com a rapariga.
Os passeios esguios da calçada antiga e a humidade não ajudaram, mas foi mesmo este turbilhão de recordações e sentimentos que o fizeram tropeçar pelo menos duas vezes no caminho. Chegado à paragem, esta ainda se encontra vazia, olha para o relógio digital ansioso, apenas para verificar aquilo que já sabia, tinha-se adiantado bem mais do que necessário e agora ainda faltavam vinte e cinco minutos para o autocarro chegar. Resignado a passar o tempo de alguma forma, olha para o seu reflexo no vidro da paragem para verificar se está tudo em ordem. Ajeita o cabelo e o casaco satisfeito com o seu preparo, ficando nesse instante ciente que se observa há já algum tempo. Envergonhado, olha sobre o ombro com receio que alguém o esteja a observar, por sorte ninguém passava. Aproxima-se da beira da estrada e olha para o fim da rua futilmente e dá um passo de um lado para o outro. Decide sentar-se. As pernas agitam-se tanto pelo frio como pelo nervosismo, roda o pulso para consultar o seu relógio novamente para verificar que apenas três minutos tinham passado. Frustrado, solta o ar para o lado, chateado com o tempo que tantas vezes lhe foge mas que hoje teima em passar. Decide pegar no seu smartphone apesar das suas mãos lhe implorarem pelo aconchego dos bolsos, “Vou pôr uma música e não pensar em mais nada… e se pesquisar alguma curiosidade sobre autocarros? Era uma boa forma de começar a conversa! Calma, estás outra vez a ser esquisito, às vezes menos é mais. Lembra-te! Já falaste com raparigas antes.” tenta, internamente, assegurar-se. Passados alguns segundos da música começar mais um passageiro chega, um homem que não costuma ver. Pouca atenção recebe, visto que Rodep já está ocupado a pesquisar por curiosidades do transporte rodoviário.
Perdido na internet, nem se apercebe que os restantes passageiros habituais vão chegando a seu tempo e só mesmo o som dos hidráulicos do tão angustiantemente esperado autocarro o retiram do seu transe. Levanta-se de rompante e aproxima-se do fim do passeio, sem se preocupar se estava a passar à frente de alguém. Expectante, observa a chegada do veículo tentando avistá-la, sabendo de antemão que provavelmente não a conseguirá ver, tendo em conta que ela prefere ir na fila que fica por trás do motorista, aquela que não é visível dali. No instante em que a tenta ver, vem-lhe o pensamento “ E se ela não vem hoje?”, os olhos abrem-se muito assustado com a ideia de toda a preparação e preocupação terem sido em vão, como se não houvesse um amanhã. Tinha preparado tudo, pensado e repensado a melhor forma de começar a conversa, vestido a roupa que, apesar de ainda poder ser considerada causal, é das melhores que tem e, agora, ela pode muito bem nem vir hoje. Antes que esta espiral de consternação possa prosseguir, as portas de vidro param diante de si e abrem.
Atrás dele, há uma fila de pessoas mal dispostas e impacientes para entrar. Rodep sobressalta-se e, apressado, sobe as escadas tirando a carteira que quase lhe salta da mão. Mostra o passe sem perder tempo e, ignorando o motorista, com o coração aos saltos no peito, levanta os olhos para se encontrar com os olhos castanhos que, por um segundo, cruzam os seus e logo se viram para o exterior. Tal como ansiava, a rapariga encontrava-se onde costuma estar, sozinha no seu assento encostada ao vidro, como que dizendo que prefere ir sozinha mas convidando qualquer um a sentar-se a seu lado. O alívio percorre-lhe o corpo muito rapidamente, o alívio de tudo estar no sitio certo. “É agora, tem de ser agora”, pensa, determinado, enquanto uma enorme insegurança lhe vem morder os calcanhares, insistindo para que se sente como se costuma sentar todos os dias sem falar. Preso entre este dois polos, vai num estado de meio sonambulismo até ao lugar da rapariga. Sentada sobre a perna esquerda e encostada ao vidro, apoiando o rosto redondo sobre a mão esquerda, por instantes, ela nem se apercebera da sua presença. O sol entra pela janela acariciando-lhe a face e o cabelo castanho claro, que lhe chega aos ombros, dando-lhe tonalidades quase douradas. Veste uma daquelas calças de ganga justas, azuis, das que já vêm com aquele aspecto desbotado quando se compra, e uma camisola de malha creme quase castanha que se custa a ver por debaixo do casaco azul escuro. O instante passa, e ela está a olhá-lo admirada. “Bom dia, posso me sentar?” - Rodep consegue dizer antes que o momento se torne incómodo. “Bom dia, sim, claro” - diz a rapariga com um pequeno sorriso, enquanto tira uma mochila do outro assento. O peso do mundo abate-se sobre Rodep. Se passar demasiado tempo, vai ser estranho começar a conversar, mas parece que não consegue encontrar nada para dizer. Será que deve começar pela curiosidade que encontrou, ou pelo estado tempo? Não, o tempo é muito cliché e parece coisa de velho. “Também vais para universidade?” - arrisca sem pensar, “Sim, estou no segundo ano de fisioterapia e tu?” - diz a rapariga, agora olhando para ele. “Eu entrei este ano para informática” - diz Rodep, tentando não mostrar-se demasiado surpreso por ela estar, não só a responder-lhe, como a ser simpática e interessada.
“E que tal? Estás a gostar? Como correu o primeiro semestre?” - a rapariga pergunta novamente. “Estou, gostava que fosse mais prático. Eu já faço alguma programação e gostava que fossemos um pouco mais fundo. Já agora, eu sou o Rodep e tu?” - pergunta muito satisfeito consigo mesmo, com o nervosismo cada vez mais longe. “Paatrici, mas todos me chamam Trici, muito gosto” - diz, novamente sorrindo. “Ora muito prazer também” - responde, achando que foi demasiado cortês, mas Trici pareceu achar piada pois soltou uma pequena gargalhada. “Sabes que é sempre assim, o primeiro semestre é sempre um pouco mais teórico. Vais ver que em menos de nada já estás a fazer o próximo grande sistema operativo.” - diz Trici, em forma de brincadeira. “Ah! Isso queria eu, mas é como dizes, vai melhorar. És de cá?” pergunta já despreocupado. Toda a insegurança parece-se já uma memória. “Sim, e tu?” - pergunta entusiasticamente. “Não, vim do interior sou de Ravéo. Até há bem pouco tempo só tinha visto o mar duas vezes” - admite timidamente, “Já fui a Ravéo, é muito bonita a tua terra, adorei os murais das ruínas. Estás a gostar de cá viver? Imagino que seja bem diferente”. “Sim, estou a gostar muito do que vejo todos os dias” - diz Rodep irreflectidamente quando, de imediato, se apercebe do que disse. “Ainda bem” - responde Trici, agora ela meio envergonhada. “Aaahmm… Alguma coisa que me aconselhes fazer?” - Rodep tenta mudar de assunto rapidamente receando ter tornado as suas intenções demasiado claras. “Sim! Já foste ao teatro? Temos um teatro lindo e uma companhia de teatro fantástica!” - Trici responde animada, perdendo um pouco do rubor que ganhou nas faces com o comentário que Rodep tecera anteriormente. “Não, nem nunca fui ao teatro, mas agora deixaste-me curioso e com vontade de experimentar.” - responde com um interesse espontâneo a nascer pelo teatro. “Nunca? Ah, então tens mesmo de ir, agora está a passar uma peça linda chamada Caminhante, devias experimentar, sim”. “Não te disse que programava? Eu sou mesmo aquele nerd típico, tirando o basket e a escola, o PC é a minha praia.” - diz Rodep rindo, provocando uma gargalhada em Trici. “Não és nada! Não tens nada aspecto disso, além do mais fazer desporto não é coisa de nerd” refuta, sorrindo, para deleite de Rodep. “Ah, mas olha que a nerdice é todo um mundo que desconheces, há várias espécies e subespécies. Há aqueles dos jogos de computador, da banda desenhada e dos jogos de tabuleiro entre muitas outras coisas”, “Hahaha, estou a ver, então tu és mais do computador?” - pergunta radiante. “Sim, isso mesmo. Sou aquele tipo que viu uma série e resolveu começar a tentar aprender pela internet”. “ Foi assim que começaste? Uau, estou a ver que és uma espécie de génio.” “Hahahaha… não, achas... sou mesmo só curioso. E tu, porquê a fisioterapia?”. “Sempre gostei de estar junto de pessoas, e a ideia de poder participar na recuperação de alguém foi algo que me fascinou.” - diz Trici com entusiasmo e foi quase como se Rodep conseguisse ver uma aura em seu redor. “Isso é muito bonito, Trici.” - ouve-se dizer, o que faz com que a rapariga esboce um sorriso adorável que o derrete de imediato. “Qual é mesmo o nome do teatro?” - consegue perguntar, receando que o momento se torne estranho quando, na verdade, estava o oposto disso.
O autocarro pára pela terceira vez e Trici quase se esquece que esta é a sua saída. “Eu saio aqui! Desculpa, tens de me deixar sair!”. Apressada, pega na sua mochila e levanta-se do seu lugar. “Ah, desculpa eu, quase te fazia perder a saída” - diz Rodep, incerto de que a sua tentativa de estabelecer contacto tenha sido bem sucedida por vê-la sair tão depressa. “Teria sido só conversa de circunstância? Estaria só Trici a dar umas dicas a um caloiro?” - pensa meio desmorecido enquanto ela desce as escadas do autocarro. Ainda antes do último degrau, Trici vira-se para o encarar com um sorriso que mais parece o amanhacer. “Então até amanhã” - diz, e com três simples palavras deixa a esperança no coração de Rodep. Na verdade, também ela ficara muito satisfeita por finalmente saber quem era o caloiro que a acompanhava nas suas últimas três paragens.                        


    

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